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Mário Barbosa: “A U.Porto são muitos lugares, mesmo quando parece ser sempre o mesmo”

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O Olhar de...

- Investigador e professor universitário português

- Director e investigador do Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB)

- Professor Catedrático do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da FEUP (1992)

Antigo Estudante da Faculdade de Engenharia da U.Porto, com Licenciatura em Engenharia Metalúrgica (1972)

- George Winter Prize 2001, o maior prémio europeu de biomateriais.

 

Como é que teve origem e se tem vindo a desenvolver a sua ligação à Universidade do Porto? Que principais momentos guarda da sua experiência enquanto estudante/professor/investigador da U.Porto?

 

Várias pessoas fizeram com que eu viesse para a Universidade do Porto. A primeira, foi a D. Maria. A D. Maria achava que eu devia ir para o liceu. Ela tinha esta ambição para os seus alunos da 4ª classe. Naqueles anos havia o liceu, a escola industrial e a escola comercial. O meu pai tinha andado na escola comercial. Tinha uma caligrafia muito bonita. Depois de ter trabalhado num posto de saúde empregou-se numa fábrica de tintas, onde havia tambores cheios de resina. Lá, eu podia apanhar o aroma dos pinheiros com uma mão. Pequenos fragmentos amarelos e translúcidos. Em latas amontoadas em prateleiras havia cores que eu nunca tinha visto. E sobre uma banca muito limpa uma balança e pesos de metal arrumados num bloco de madeira, com furos com a medida exacta. O meu primeiro lego, antes de ter brincado com um a sério.

 

A balança da fábrica do meu pai era diferente da meu avô. O meu avô tinha-me ensinado a fazer anéis de prata, soprando a chama de um bico de gás por um tubo de latão. Um sopro de calor vermelho, quase branco, a incidir sobre meu anel, pousado num pedaço de carvão de choça. Um sol impossível. Ali, sobre a minha mão esquerda.

 

O meu pai chegava tarde a casa. Cheirava a resina e água-raz. Eu achava que aquilo eram perfumes, mas a minha mãe queixava-se. Das horas e dos cheiros. Do salário que apertava mais a mesa ao fim do mês. Apesar disso, eu tinha sapatos e podia arrogar-me ter pena dos meus amigos que iam para a escola descalços. Eu era o menino rico. Quando fiz nove anos, mudámos de casa. O meu pai de emprego. Mudou para a fábrica do Sr. Laranjo. Passou a misturar outras cores e químicos de cheiro intenso. Quem trabalhava na cozinha de cores tinha que beber leite. Era uma ironia chamar cozinha aquele cubículo onde todos arruinaram a sua saúde. Alguns sentiam-se mal com os cheiros. Deviam ter bebido leite. “Sua culpa”, dizia-se. Um dia, houve uma grande explosão. Eu ouvi-a de minha casa. Um colega do meu pai ficou muito queimado. O meu pai não. Teve sorte nessa altura. Veio a morrer com um cancro na bexiga. Na fábrica de estampagem, os químicos não queimavam logo.

 

Eu também tinha tido sorte quando a D. Maria disse ao meu pai que eu devia ir para o liceu. Um colega meu, o melhor aluno da turma, ficou por ali. A quarta classe dava entrada no mercado de trabalho. Com 10 anos. A nossa escola não era num local ermo. Era em Perafita, perto do actual aeroporto. Em 1959. Havia campos, bandos de pardais, uma rua de terra onde jogávamos à bola. Às vezes, parávamos para deixar passar um carro ou um cão que queria partilhar a brincadeira connosco. Hoje, passam lá carros, ouvem-se aviões e já ninguém joga à bola na rua. Naquela e em muitas outras da cidade.

 

Até chegar ao D. Manuel II,  o meu liceu, ia na camioneta da carreira, que apanhava em frente à loja da Meninha. Lembro-me do seu bigode mal aparado e da manteiga batida, tirada de um tigela grande de barro. Um dos filhos dela, meu colega na escola, morreu no mar. Uma morte prematura. Como todas. Todas as classes, da primeira à quarta, iam aos funerais das crianças que morriam na freguesia.  Muitas, mais pequenas do que eu. Os anjinhos, como lhes chamavam. Pálidos, cobertos por rendas brancas, num caixão branco, minúsculo como um barco de brincar. O que era a morte nos meus sete anos? Um cheiro doce a flores, desprendido das almas e dos canteiros do cemitério.

 

A camioneta parava em frente ao Mercado de Matosinhos. Aí apanhava o eléctrico para o D. Manuel II. Vinha o “trinca-bilhetes” e fazia um furo no passe. Mal ele voltava costas, nós abríamos crateras na sua reputação de disciplinador. O eléctrico era uma balbúrdia de madeira, sobre trilhos de aço, com dois homens, quase sempre bons, lá dentro. O outro era o guarda-freios. Ao lado dele ia um polícia, encostado ao vidro, ajudando a desfazer o tempo. Até à camioneta eu já tinha andado uma meia hora, entre campos e algumas casas. No regresso, era o caminho dos sustos, das corridas até ao próximo candeeiro, onde respirava fundo, protegido por uma luz pálida. No vazio da luz, as almas saiam do cemitério, enchiam os campos e os caminhos. Só não se aventuravam nos espaços ocupados pela luz. Eu imaginava isso. Nada mais me protegia do medo. De dia, era um caminho com cheiros a campos, pardais em bando, sardaniscas assustadas nos muros. A universidade chegou depressa à minha porta. Mas nos meus dez anos, eu aspirava a ter catorze. Nos catorze aspirava a ter dezoito. Depois, acho que nunca mais desejei envelhecer.

 

Aos catorze anos tive que fazer a primeira grande escolha da vida. Ir para ciências ou para letras.  A matemática era um jogo de que eu gostava. Gostava também de ver as plantas nascer da terra arada, de apanhar minhocas e grilos, de correr atrás das galinhas, de ficar à espreita de um ovo quente. Mais tarde, vim a saber que essas coisas vivas, para mim indistinguíveis dos cheiros e das cores, se estudavam em livros de biologia. As outras eram explicadas nos livros de química. Ninguém me dissera em que livros aprenderia a fazer anéis, a reduzir o ouro a fios muito finos, a recuperá-lo do lixo que se varria do chão da oficina, ou do que ficava retido num pano que filtrava a água de lavar as mãos. Apenas o meu avô me explicou essas coisas. Sem livros, na sua imensa benevolência para com os meus erros de aprendiz. Ele tinha um caderno onde guardava os desenhos de anéis, broches, alfinetes e outras peças de que não recordo os nomes. Cortando, serrando, limando, soldando e polindo o ouro dava vida aos traços finos do caderno. Transformava as duas dimensões cinzentas e baças de riscos de lápis em jóias que brilhariam com as cores de um sol tardio, saído de uma caixinha forrada a veludo azul.  Eu nunca desenhei como ele. Tinha uma falta de jeito enorme para desenhar. Mesmo no papel, as minhas jarras faziam exercícios maravilhosos de equilíbrio. Só dobrando a meio um papel fino, e usando o traço de meia jarra, conseguia fazer a outra metade, sem me envergonhar muito do resultado, mas sentindo pouco orgulho na técnica. Os meus filhos desenham muito bem. A minha frustração está compensada.

 

Com tão pouco talento para o desenho, não iria nem para engenharia civil, nem para mecânica. Como conseguiria desenhar um prédio ou uma máquina, se nem as jarras que desenhava se mantinham de pé? Só na faculdade percebi que não era este o tipo de desenho que lá se aprendia. Era tarde para fazer outra opção. Tinha escolhido engenharia química. Eu não sabia o que era, mas imaginava que ficaria mais perto das tintas, dos corantes e dos cheiros que entravam em casa com o meu pai. Ficaria mais perto dele e do seu desejo de uma outra vida para mim. Melhor do que a sua. Quando abriu o curso de engenharia metalúrgica, mudei. Imaginei-me com o meu avô, na sua oficina, voltando a laminar e a fundir ouro e prata, prendendo na mão o brilho do sol, nascido sobre um pedaço de carvão de choça. A minha filha desenha e faz jóias. O meu avô teria gostado de saber.

 

Acabei o curso de metalurgia em 1972. 38 anos depois, pouco do que faço se relaciona com esse passado. Mas tudo o que fiz depois está assente nele. De 1967 a 1972 a Universidade do Porto foi a oficina onde aprendi muitas coisas novas. Sem a D. Maria eu nunca as teria aprendido. Não aprendi química com o meu pai, nem estruturas cristalinas com o meu avô. Mas sem eles nunca saberia o que são radicais livres nem imaginaria que um metal é feito de cristais minúsculos.

 

Depois deles, conheci pessoas extraordinárias.  Muitas delas na Universidade do Porto, que fizeram dela uma grande oficina, onde ainda hoje aprendo e me fascino, como se estivesse a sentir o cheiro da resina e a segurar na mão um pedaço de carvão em brasa.

 

- Qual a importância da U.Porto no seu percurso profissional e de que modo tem ido de encontro às suas expectativas?

 

Tenho saído muitas vezes. Em sabáticas, sobretudo. Tenho sempre um grande desejo de voltar, mas não gosto de regressar ao mesmo lugar. A universidade são muitos lugares, mesmo quando parece ser sempre o mesmo. É disso que gosto nela. A praça, onde se encontram pessoas extraordinárias. E é também isso que nela detesto. O lugarejo, os homens e as mulheres à porta, à espera do fim do dia. Ou da reforma. Mas há uma parte da universidade que se move, que tem cor e cheiro. Expectativas? Não sei se alguma vez pensei assim, na universidade satisfazer as minhas expectativas. Se alguma coisa quis ou quero é que ela seja viva. Eu gosto de me sentir um pedacinho dela. 

 

- Como avalia o papel desempenhado pela Universidade no seio da comunidade (cidade, região, país) e de que modo ele se poderá projectar para o futuro, com especial enfoque no campo da investigação e da produção de conhecimento e inovação?

 

A universidade são muitos lugares. Muitas formas de agir. De interagir. E muitas formas de estar. O futuro da universidade será onde chegarem a transversalidade, o conhecimento integrativo, o hábito da exigência e da responsabilidade. Será onde não existir mais espaço para pequenos túmulos habitados por sacerdotes que prosperam na complacência e na generosidade de fieis públicos.

 

- Que caminho deverá ser percorrido para afirmar cada vez mais a Universidade no contexto regional, nacional e internacional? Como prevê o papel de uma Universidade do Porto daqui a 100 anos?

 

Esta é a resposta mais fácil. Felizmente, só há um caminho para se estar vivo daqui a 100 anos. Regenerar-se continuamente.

 

- Mensagem alusiva aos 100 anos da Universidade do Porto (formato livre)

“Quando fizer 500 anos quero-a mais nova”.

 
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